quinta-feira, 5 de julho de 2012

Síndrome de Spoan


Spoan uma nova doença
Uniões consangüíneas provocam uma forma desconhecida de deficiência
em cidade do Nordeste
Marcos Pivetta, de Serrinha dos Pintos (RN)
Há quinze anos, Elenara Maria de Queiroz Moura estava grávida - e a cena de
uma novela não lhe saía da cabeça. Um casal de primos queria ter filhos e
procurara um ginecologista. Quando soube que os clientes eram parentes
próximos, o doutor do folhetim televisivo fora taxativo: era melhor evitar a
gravidez. Casamentos consangüíneos apresentam maior risco de gerar crianças com
alguma doença hereditária. Se queriam descendentes, era mais prudente adotar
um, sentenciara o médico. Elenara, então com 20 anos, tinha motivos para se
preocupar. Era casada com José Moura Sobrinho, um primo em primeiro grau cinco
anos mais velho. Ambos eram naturais de Serrinha dos Pintos, um município de
4.300 habitantes, distante 370 quilômetros a oeste de Natal, no Rio Grande do Norte,
onde subir ao altar com um parente é um costume local. E tinham na família
"deficientes", tios confinados a cadeiras de rodas devido a uma misteriosa
doença que, paulatinamente, enrijece e enfraquece primeiro pernas e depois
braços, além de afetar a postura em geral e, em menor intensidade, a visão e a
fala. Apesar dos temores, Isabela, a primogênita do casal, nasceu normal.
"Fiquei aliviada e pensei que estava tudo bem", relembra Elenara. "Engravidei
da minha segunda filha sem medo." Mas a história de Paulinha, a caçula de 10
anos, foi diferente.
A menina nasceu com a síndrome Spoan, uma doença neurodegenerativa
recém-descoberta entre os habitantes da localidade potiguar e descrita em maio
por pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital das
Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) num artigo publicado na revista
norte-americana Annals of Neurology. Ainda não se sabe em qual gene
está a mutação que causa a doença, mas os cientistas analisaram amostras de DNA
de 74 moradores da cidade, entre doentes e sadios, e os resultados dos estudos
indicam que o gene da Spoan se encontra numa região do cromossomo 11. O
problema é que existem ao menos 143 genes nessa região, dos quais 96 são
ativados em tecido nervoso. Ou seja, por ora, quase uma centena de genes são
candidatos a causadores da doença.
"Mapeamos a região do gene, ou bairro onde ele se encontra", compara a
geneticista Mayana Zatz, coordenadora dos trabalhos com a nova doença e do
Centro de Estudos do Genoma Humano, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e
Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. "Falta achar a casa, o gene ligado à
síndrome." Com sorte, em um ou dois anos, a equipe da USP espera ter isolado o
gene e identificado a mutação que provoca a Spoan. Assim que tiverem essas
informações, os cientistas vão criar um teste pré-natal capaz de detectar a
presença da mutação em bebês ainda em gestação e identificar os indivíduos
heterozigotos para essa anomalia genética (pessoas saudáveis, mas que podem ter
filhos com a doença). "Até agora não se conhece nenhuma doença neurológica
associada a genes dessa região do cromossomo 11", diz a aluna de doutorado
Lucia Inês Macedo-Souza, encarregada de achar a "casa" onde se encontra a base
molecular da Spoan.
Em inglês, Spoan significa Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy,
nome complicado para um quadro complexo. Para um "problema de família", no
falar simples dos moradores de Serrinha. Até agora os cientistas identificaram
26 pessoas vivas com Spoan, das quais 17 são mulheres e 9 homens. Todos os
indivíduos afetados são brancos, caucasianos, provavelmente de ascendência
portuguesa ou talvez holandesa, e originários dessa cidade serrana. A maioria
ainda mora em sua terra natal e todos descendem de casais aparentados, de 19 uniões
consangüíneas. "Examinamos pacientes de várias idades com a síndrome, dos 10
aos 63 anos", afirma a bióloga Silvana Santos, principal responsável pela
descoberta da inédita patologia e bolsista de pós-doutorado da FAPESP. "Pudemos
ver a evolução da doença. Com o tempo, as pessoas se fecham como uma flor."
Embora sem cura, a doença em si não é fatal e mantém intacta a capacidade de
pensar dos doentes. Não provoca retardo mental, dor ou surdez. Mas seus efeitos
sobre a qualidade de vida dos afetados, que se tornam deficientes físicos, são
devastadores. Sobretudo numa população rural e carente de serviços de saúde
como a de Serrinha dos Pintos, que credita, de forma folclórica, a origem da
nova doença a uma sífilis hereditária de um antigo e mulherengo ancestral que
teria se espalhado pelo sangue da família. Ali não há serviço de fisioterapia
para minimizar os problemas de postura decorrentes da paraplegia associada à
doença e as vítimas da síndrome vivem apartadas do dia-a-dia, recolhidas ao
interior de suas casas, totalmente dependentes dos cuidados de familiares. Sem
o devido acompanhamento médico, ninguém toma remédios para reduzir a rigidez e
o enfraquecimento das pernas e braços. Os pés entortam para fora e a cabeça
cai. Dos doentes conhecidos, apenas Paulinha não está em cadeira de rodas. Com
a energia interminável que só as crianças parecem ter, a menina consegue se
locomover com o auxílio de um andador com rodinhas.
No jargão da biologia molecular, a Spoan se classifica entre as doenças de
herança autossômica recessiva. Homens e mulheres têm a mesma probabilidade de
apresentar a patologia, a despeito de o número de casos conhecidos em Serrinha
ser maior entre o sexo feminino. Uma pessoa só vai desenvolver Spoan se as duas
cópias do ainda desconhecido gene associado à síndrome, uma vinda do pai e
outra da mãe, carregarem a mutação que leva ao problema de saúde. Portanto, os
pais de um doente com Spoan são necessariamente heterozigotos. São portadores
da mutação em apenas uma das duas cópias do gene, nunca nas duas, e não
manifestam a síndrome. Mas podem transmiti-la para a prole, como atestam os
pacientes de Serrinha. Filhos de pais heterozigotos participam
involuntariamente de uma roleta-russa biológica. Têm 25% de risco de se
tornarem doentes, de herdarem as duas cópias do gene com a mutação; 50% de
somente portarem a mutação em uma das cópias do gene, de serem heterozigotos; e
25% de não serem portadores de nenhuma alteração nas duas cópias do gene da
Spoan, sendo saudáveis e incapazes de passar adiante a mutação. "Um em cada 250
habitantes de Serrinha tem a doença e um em cada nove é heterozigoto para essa
condição", estima o neurologista Fernando Kok, que fez a descrição clínica e
neurológica dos sintomas da Spoan.Obs. :  texto da revista fapesp -  todos os direitos reservados.

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